[Nelson Tembra] O resultado do cruzamento de dados sobre o setor madeireiro, a máfia da grilagem, a violência no campo e o avanço da pecuária no Estado do Pará revela como estes dados, relacionados entre si, tornaram o Pará responsável por cerca de 40% do total desmatado em toda a Amazônia Legal. A região é palco constante de denúncias de abusos ambientais e desrespeito aos direitos humanos. Os problemas ambientais do Pará estão freqüentemente associados com ausência de aplicação da lei e injustiça social.
A análise de depoimentos de comunidades ribeirinhas, pesquisas científicas, declarações de autoridades, investigações independentes, notícias de jornais e revistas e dados oficiais do governo traça um panorama cruel do que vem ocorrendo em áreas remotas do Pará. Explica o processo de invasão e conquista de áreas remotas e intocadas, mostrando claramente que a ilegalidade, a desordem fundiária e a destruição da Amazônia ameaçam não só a floresta, mas as comunidades tradicionais que dela dependam para sobreviver.
Observa-se um quadro alarmante de invasões e grilagem de terras, violência, assassinatos e trabalho escravo, que é a face obscura da destruição da Amazônia. Considerados de forma isolada, cada um desses casos é uma ofensa à dignidade e direitos humanos, e juntos eles criam um panorama dramático de uma região brasileira que perece caminhar em direção a um futuro sem lei.
Relatórios de organizações não-governamentais dão conta que madeireiros e grandes latifundiários, em diferentes regiões do Pará, pressionam comunidades tradicionais indefesas a deixar suas terras e, em alguns casos, simplesmente expulsam os residentes locais destruindo suas plantações, queimando suas casas e até matando pessoas.
Ainda que inúmeros casos de violência, incluindo assassinatos, sejam registrados, quase nunca eles são investigados de forma apropriada. Os responsáveis raramente são punidos, porque as testemunhas são intimidadas ou mortas. A intervenção pública é desestruturada, esporádica, parcial e fragmentada. Os diferentes níveis e setores do governo dificilmente interagem satisfatoriamente entre si.
Um modelo equivocado de desenvolvimento abriu as portas para a invasão e ocupação ilegal de terras públicas e o uso de violência e degradação sistemática dos recursos naturais em nome do progresso econômico. Embora a destruição da floresta envolva muito dinheiro, ela beneficia poucos e o Pará continua apresentando baixíssimos índices de qualidade de vida e desenvolvimento social. Restam às populações menos privilegiadas, via de regra, as vergonhosas “epidemias” originárias do subdesenvolvimento.
Fica claro não ser mais possível compreender isoladamente o setor madeireiro do Pará, que deve ser enquadrado em contexto mais amplo. Mas, o acelerado processo de “desenvolvimento” é alimentado por atividades de grupos econômicos que operam sem sofrer o devido controle do governo federal e estadual, como grandes projetos privados que almejam trazer “progresso” para a região.
Na tentativa de salvar o que restou das florestas originais do Pará, comunidades locais, as organizações não-governamentais e setores do governo brasileiro estão engajados na luta por um modelo alternativo de uso da terra baseado na posse comunitária e no estabelecimento de uma rede de áreas protegidas.
Um exemplo didático desse quadro caótico está no município de Portel, e o caso é antigo, pois já havia sido denunciada na extinta “Província do Pará”, em 27 de novembro de 1979, com a manchete: “Prefeito de Portel acusa grupo por invasão de área”, referindo-se às denúncias do prefeito da época, Felizardo Justino Diniz, contra o Grupo Garcia, que, na área dos rios Camarapi e Pacajá, com métodos violentos, expulsavam ribeirinhos de suas moradias, agravando problemas ao erário com o aumento de demandas sociais na área municipal urbana.
Vinte e nove anos após, ribeirinhos de Portel continuam denunciando ameaças e perseguições na área dos rios Camarapi e Pacajá “por pistoleiros e policiais militares armados”. Só que a acusação agora recai sobre a empresa madeireira CIKEL, tida como exemplo de respeito ao meio ambiente e que possui selo internacional de certificação do “Forest Stewardship Council – FSC” em seus planos de manejo.
Somente agora, após as denúncias de Felizardo Justino Diniz feitas há quase três décadas, a Prefeitura Municipal de Portel, representada pelo prefeito reeleito Pedro Rodrigues Barbosa, e as Populações Tradicionais, ingressaram na Justiça Federal com uma ação civil pública, com antecipação de tutela, contra o Instituto de Terras do Pará - ITERPA, o Estado do Pará e a empresa Agropecuária Brasil Norte S.A. Produção e Exportação - ABC.
A ação, que é assinada pelo advogado Ismael Moraes, pede a suspensão dos registros imobiliários dos 108.241 hectares de terras da área conhecida por gleba Joana Peres I, além da realização de ação discriminatória pelos atores governamentais e não governamentais competentes, e uma vez definidas as posses, cancelamento dos registros de imóveis emitidos em nome da empresa.
De acordo com Ismael Moraes, “isto é um escândalo, típico de grilagem oficial, praticado pelo ITERPA em favor de uma empresa particular e em total detrimento aos direitos de populações tradicionais cujos direitos humanos foram violados pelo aparelho policial do Estado e pistoleiros da empresa, que expulsam, intimidam e ameaçam famílias nas terras onde elas sempre viveram e dela tiram o próprio sustento”.
Moraes acrescenta ter havido “fraude e nulidade de pleno direito” na emissão dos títulos. As terras foram vendidas pelo Estado para ABC em 1977, e pelo Código de Processo Civil, o direito para propor ação de cancelamento de registro já prescreveu há mais de 15 anos. Mas os direitos humanos dos ribeirinhos são imprescritíveis. E o argumento principal é de que a República Federativa do Brasil, da qual o Pará faz parte, e a União Federal, respeitam tratados e convenções internacionais de direitos humanos que são signatários.
É curioso verificar que o próprio diretor do Departamento Jurídico do ITERPA, Flávio Manso, em entrevista ao jornalista Carlos Mendes, tenha dito que o órgão iria se defender, “mas não da maneira como a ação civil pública impetrada por ribeirinhos da área vendida pelo Estado à empresa ABC estava colocada na Justiça Federal”.
A preocupação do ITERPA seria “equacionar o passivo fundiário” de Portel. Em termos jurídicos, há indícios de violação à norma constitucional que limitava a alienação de terra da União e do Estado a três mil hectares. A autorização para a venda de terra acima desse limite teria que ser feita pelo Senado.
A violação própria da norma constitucional não prescreve, e o ITERPA criou uma comissão para analisar a fraude que permitiu à empresa ABC adquirir mais de 240 mil hectares na região. “A aquisição foi feita pela interposição de outras pessoas. O ato, portanto, foi inconstitucional”. “O ITERPA, no seu entendimento, poderia, por intermédio do artigo 15 das disposições transitórias da Constituição Estadual, convalidar a venda das terras de Portel e enviar o caso para o Congresso Nacional”.
O Estado vai defender a licitação, entendendo que se houve fraude ela foi praticada pelo agente privado. “Os laranjas concentraram essas terras no nome de uma empresa. Agora, se este ato é nulo ou anulável, Manso não vê problema nenhum”. “Caso o Congresso Nacional convalide esse ato, problema dele” (isto nos remete a Poncio Pilatos...). A Constituição permite que o Estado faça a revisão de todos os títulos de terra expedidos até 1952. Essa revisão só cabe ao próprio Estado.
Lamentavelmente, o ITERPA não considera no mérito a questão que envolve direitos humanos, tida como ponto pacífico, conforme declarado pelo próprio representante do órgão fundiário à imprensa. As citações demonstram a intensidade e natureza dos “esforços” institucionais e poderiam explicar as razões pelas quais empresas “comprometidas com atividades legais sustentáveis”, “certificadas com Selo Verde”, continuem com um lugar garantido no presente e no futuro, apesar das graves denúncias e da mencionada ação judicial interposta. O principal desafio continuará sendo o de fazer valer o poder - e principalmente o dever - de o Estado perseguir e alcançar a verdadeira justiça, fundiária, social e ambiental.
Pelas evidências, não surpreende que a certificação florestal da Fazenda Jutaituba, com uma área total de 108.241 hectares, onde são colhidas mais de 60 espécies nativas, as mais importantes Angelim, Cupiuba, Fava, Ipê, Jatobá, Maçaranduba, Piquiarana, Tachi e Tatajuba tenha sido um processo voluntário em que foi realizada avaliação do empreendimento da CIKEL BRASIL VERDE S/A por uma organização independente, a certificadora SCIENTIFIC CERTIFICATION SYSTEMS - SCS, que verificou o “cumprimento de questões ambientais, econômicas e sociais que fazem parte dos Princípios do FSC”.
O FSC, sigla em inglês que significa Forest Stewardship Council, ou Conselho de Manejo Florestal, é uma entidade internacional que credencia organizações certificadoras de modo a garantir a “autenticidade” de suas declarações. Cabe às certificadoras avaliar operações de manejo florestal ou de cadeias de custódia para conceder o uso do selo FSC nos produtos, e auditar as operações certificadas, sejam de manejo florestal ou de cadeia de custódia.
Não surpreende que caiba à certificadora especificar e cobrar por este serviço, mais ainda: para candidatar-se à certificação, devam ser atendidos Princípios e Critérios, dentre os quais se destacam a obediência às leis e aos princípios do FSC. O manejo florestal deve respeitar todas as leis aplicáveis ao país aonde opera os tratados internacionais e acordos assinados por este país.
Outro critério avaliado na certificação se refere às responsabilidades e direitos de posse e uso da terra. Os direitos de posse e uso de longo prazo relativos à terra e aos recursos florestais devem ser claramente definidos, documentados e legalmente estabelecidos, devendo ser demonstrada, também, clara evidência quanto aos direitos de uso dos recursos florestais de longo prazo relativos à terra, por exemplo: título da terra, direitos costumários adquiridos ou contratos de arrendamento.
É surpreendente que as comunidades locais, com direitos legais e costumários de uso e de posse da terra, devam, segundo esses mesmos critérios e princípios, manter controle sobre as atividades florestais na extensão necessária para proteger seus direitos ou recursos, a menos que deleguem este controle a terceiros, de forma livre e consciente.
É surpreendente que devam ser adotados mecanismos apropriados para a resolução de disputas sobre reivindicações de posse e direitos de uso da terra. As circunstâncias e o status de quaisquer disputas pendentes devem ser explicitamente considerados na avaliação da certificação. É surpreendente verificar que disputas de magnitude substancial, envolvendo um número significativo de interesses, apesar das evidências e de constarem no próprio relatório de certificação, não tenham desqualificado a operação florestal de ser certificada.
Outro critério de certificação se refere às Relações Comunitárias e Direitos dos Trabalhadores. É surpreendente que as atividades de manejo florestal devam manter ou ampliar o bem estar econômico e social de longo prazo dos trabalhadores florestais e das comunidades locais.
Recomenda-se, ainda, que sejam dadas às comunidades inseridas ou adjacentes à área de manejo florestal oportunidades de emprego, treinamento e outros serviços. É surpreendente que o planejamento e a implantação de operações de manejo florestal devam incorporar resultados de avaliações de impacto social e que devam ser mantidos processos de consulta com as pessoas e grupos diretamente afetados pelas operações de planejamento.
Devem ser adotados mecanismos apropriados para resolver queixas e providenciar compensações justas em caso de perdas ou danos que afetem os direitos legais ou costumários, a propriedade, os recursos, ou o meio de vida das populações locais, e devem ser tomadas medidas para evitar tais perdas ou danos.
É surpreendente, diante dos fatos, que o FSC Internacional - FSC IC estabeleça, dentre outras, as regras acima citadas, para credenciamento de certificadoras responsáveis pela liberação do selo FSC, para garantir a credibilidade e acompanhar a evolução da certificação no mundo, e que as certificadoras sejam monitoradas constantemente pelo FSC IC.
Verifica-se no Relatório de Certificação do FSC, que o processo de certificação da CIKEL – Fazenda Jutaituba “pressupôs a realização de consultas públicas para os cidadãos e as mais diversas instâncias da sociedade civil organizada, direta ou indiretamente, interessadas no assunto”. Deste modo, “foram enviadas informações acerca do processo de Certificação que se estava iniciando, juntamente com um questionário, para diversos representantes de entidades, em todo o Brasil, com solicitação para que o processo fosse divulgado a todos os conhecidos”.
A área da fazenda Jutaituba é de Propriedade da Empresa Martins Agropecuária (Grupo Martins), e fica localizada no município de Portel, possui uma área total legalizada de 141.055,7 ha. A área total da fazenda é de 164.520 ha, porém os outros lotes estão em processo de legalização. As áreas com cobertura florestal para efetivo manejo somam 108.241,5 ha.
A fazenda faz limite ao norte com a fazenda ABC, ao sul com o município de Tucuruí, ao leste com o município de Bagre e Oeiras do Pará; e a oeste com o rio Pacajá. A sede da fazenda está localizada à margem direita do rio Pacajá. A área da Fazenda Jutaituba é considerada como uma das áreas mais bem preservadas de toda a região.
Em 2001, o grupo Martins abriu concorrência pública para arrendar a área visando à exploração florestal de forma sustentada. As empresas candidatas deveriam certificar a área de manejo e atender uma série de exigências, quanto à capacidade técnica, gerencial, etc. Durante o processo participaram 11 empresas, e o grupo CIKEL foi o vencedor face ao “know how” da empresa no setor florestal.
No caso específico da SCS, optou-se, pela realização de duas Reuniões Públicas, em local próximo ou de melhor acesso à área Certificada. No caso, foram realizadas em Tucuruí/PA. A primeira reunião teve por objetivo apresentar o que é a Certificação do FSC, assim como a empresa que pretendia ter a área Certificada apresentou-se institucionalmente, perante a sociedade, da mesma forma como o seu Plano de Manejo.
Numa Segunda Reunião Pública, sem a participação da empresa requerente, a SCS novamente convidou as instituições conhecidas ou interessadas, e aquelas que participaram da Primeira reunião, para colher as “preocupações públicas” acerca do processo de Certificação que estava sendo avaliado.
No caso específico da questão atinente às comunidades do rio Camarapi, no município de Portel, é surpreendente verificar que ela surgiu quando da realização da Segunda Reunião Pública, no final de 2002, em Tucuruí. Tratam-se de populações que vivem dentro da área da fazenda ABC, pertencente à empresa ABC Algar, e que foi arrendada pela CIKEL, para a exploração florestal.
“Essa área em questão, na realidade, não estaria sendo objeto de Certificação do FSC”, segundo o relatório, visto que “não tinha qualquer relação com a Fazenda Jutaituba”, de propriedade da Martins Agropecuária, e arrendada pela CIKEL, “sendo apenas áreas vizinhas”. Assim, é surpreendente verificar que a SCS tomou conhecimento, poucos dias antes da realização da Segunda Reunião, através do advogado que representava o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Portel, que havia uma grave questão social, envolvendo a ABC, a CIKEL, e as populações ribeirinhas moradoras do rio Camarapi.
Dessa forma, embora não tendo havido um convite formal, essa população teria sido representada por diversos cidadãos que se dirigiram a Tucuruí e teriam manifestado livremente as suas sugestões. Somando-se a tal fato, e por solicitação dos presentes, foi realizada uma Reunião Pública, especificamente em Portel, no dia 05/09/2003, com a participação de diversos moradores dessas e outras comunidades.
Da mesma forma, teriam sido entrevistados diversos líderes nas próprias comunidades, juntamente com o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Portel, Sr. Cametá, profundo conhecedor da área, desenvolvendo, inclusive, exploração florestal em área próxima. Dessa forma, essas populações teriam tido espaço para se manifestar, bem como teriam sido ouvidas suas demandas, cujo encaminhamento de solução seria tratado a seguir.
A questão social atinente às populações citadas teria sido objeto de extremo cuidado e atenção, desde que a SCS tomou conhecimento do problema, ainda no ano de 2002. “O caso específico dos moradores do rio Camarapi e Pacajá, relaciona-se com a fazenda ABC que, como foi ressaltado anteriormente, não é objeto de Certificação do FSC”, muito embora a CIKEL tenha envolvimento por ter arrendado a área. “Trata-se de questão fundiária, porquanto populações vivem dentro da ‘propriedade da empresa’”.
É surpreendente observar que os auditores da SCS reconhecem, mesmo considerando não haver relação com a Fazenda Jutaituba – objetivo da avaliação – que os problemas com essas populações deveriam ter um “encaminhamento imediato para a solução definitiva, por envolverem responsabilidade social por parte da CIKEL”.
Assim, após as reuniões com os moradores e representantes, foram apresentadas as providências que seriam tomadas, antes de concluído o processo de Certificação do FSC: i) “Apresentação de um Plano de apoio à regularização fundiária das comunidades vizinhas à Fazenda Pacajá/ABC, com metas e cronograma”; ii) “Apresentação de Plano de Ação Social para as comunidades vizinhas à Fazenda Pacajá/ABC, com metas e cronograma e orçamento”.
Desse modo, a CIKEL teria intermediado e a ABC Algar apresentado os referidos Programas, os quais, com o transcurso de cerca de seis anos, já devem ter sido postos em prática. Saliente-se que qualquer negociação para a regularização fundiária requeria tempo, e “a Certificação do FSC, certamente, teria sido um fator decisivo para que a solução pudesse ser posta em prática”.
Caberia aos auditores o acompanhamento rigoroso desse processo, a fim de averiguar sua efetividade, visto que o principal interesse é promover o bem estar e melhorias de vida dessas populações. Somando-se a isso, a CIKEL estaria “desenvolvendo trabalhos conjuntos com ONG’s de reconhecida respeitabilidade, como IMAZON e GTNA/IIEB, para encontrarem propostas de atuação na área em questão”, com objetivo de promoverem um “incremento nas condições de vida local e alternativas econômicas”.
Mais recentemente, houve reuniões com a FASE Gurupá. No caso específico dos moradores do rio Jacundá, e também dos rios Açu e Pacajá, e que envolve a propriedade da Martins Agropecuária, objeto de Certificação, envolvem também quilombolas. Para tais casos, foi exigida pelos auditores uma carta compromisso de que as áreas atualmente ocupadas por essas populações deveriam ser respeitadas, assim como estaria em negociação à doação de uma área para o quilombo Balieiro. São aspectos, dentre outros, que deveriam ser averiguados ‘in loco’, e conferidos através de auditorias ambientais independentes, a iniciar com os “tocos” nas respectivas áreas de extração...
A análise de depoimentos de comunidades ribeirinhas, pesquisas científicas, declarações de autoridades, investigações independentes, notícias de jornais e revistas e dados oficiais do governo traça um panorama cruel do que vem ocorrendo em áreas remotas do Pará. Explica o processo de invasão e conquista de áreas remotas e intocadas, mostrando claramente que a ilegalidade, a desordem fundiária e a destruição da Amazônia ameaçam não só a floresta, mas as comunidades tradicionais que dela dependam para sobreviver.
Observa-se um quadro alarmante de invasões e grilagem de terras, violência, assassinatos e trabalho escravo, que é a face obscura da destruição da Amazônia. Considerados de forma isolada, cada um desses casos é uma ofensa à dignidade e direitos humanos, e juntos eles criam um panorama dramático de uma região brasileira que perece caminhar em direção a um futuro sem lei.
Relatórios de organizações não-governamentais dão conta que madeireiros e grandes latifundiários, em diferentes regiões do Pará, pressionam comunidades tradicionais indefesas a deixar suas terras e, em alguns casos, simplesmente expulsam os residentes locais destruindo suas plantações, queimando suas casas e até matando pessoas.
Ainda que inúmeros casos de violência, incluindo assassinatos, sejam registrados, quase nunca eles são investigados de forma apropriada. Os responsáveis raramente são punidos, porque as testemunhas são intimidadas ou mortas. A intervenção pública é desestruturada, esporádica, parcial e fragmentada. Os diferentes níveis e setores do governo dificilmente interagem satisfatoriamente entre si.
Um modelo equivocado de desenvolvimento abriu as portas para a invasão e ocupação ilegal de terras públicas e o uso de violência e degradação sistemática dos recursos naturais em nome do progresso econômico. Embora a destruição da floresta envolva muito dinheiro, ela beneficia poucos e o Pará continua apresentando baixíssimos índices de qualidade de vida e desenvolvimento social. Restam às populações menos privilegiadas, via de regra, as vergonhosas “epidemias” originárias do subdesenvolvimento.
Fica claro não ser mais possível compreender isoladamente o setor madeireiro do Pará, que deve ser enquadrado em contexto mais amplo. Mas, o acelerado processo de “desenvolvimento” é alimentado por atividades de grupos econômicos que operam sem sofrer o devido controle do governo federal e estadual, como grandes projetos privados que almejam trazer “progresso” para a região.
Na tentativa de salvar o que restou das florestas originais do Pará, comunidades locais, as organizações não-governamentais e setores do governo brasileiro estão engajados na luta por um modelo alternativo de uso da terra baseado na posse comunitária e no estabelecimento de uma rede de áreas protegidas.
Um exemplo didático desse quadro caótico está no município de Portel, e o caso é antigo, pois já havia sido denunciada na extinta “Província do Pará”, em 27 de novembro de 1979, com a manchete: “Prefeito de Portel acusa grupo por invasão de área”, referindo-se às denúncias do prefeito da época, Felizardo Justino Diniz, contra o Grupo Garcia, que, na área dos rios Camarapi e Pacajá, com métodos violentos, expulsavam ribeirinhos de suas moradias, agravando problemas ao erário com o aumento de demandas sociais na área municipal urbana.
Vinte e nove anos após, ribeirinhos de Portel continuam denunciando ameaças e perseguições na área dos rios Camarapi e Pacajá “por pistoleiros e policiais militares armados”. Só que a acusação agora recai sobre a empresa madeireira CIKEL, tida como exemplo de respeito ao meio ambiente e que possui selo internacional de certificação do “Forest Stewardship Council – FSC” em seus planos de manejo.
Somente agora, após as denúncias de Felizardo Justino Diniz feitas há quase três décadas, a Prefeitura Municipal de Portel, representada pelo prefeito reeleito Pedro Rodrigues Barbosa, e as Populações Tradicionais, ingressaram na Justiça Federal com uma ação civil pública, com antecipação de tutela, contra o Instituto de Terras do Pará - ITERPA, o Estado do Pará e a empresa Agropecuária Brasil Norte S.A. Produção e Exportação - ABC.
A ação, que é assinada pelo advogado Ismael Moraes, pede a suspensão dos registros imobiliários dos 108.241 hectares de terras da área conhecida por gleba Joana Peres I, além da realização de ação discriminatória pelos atores governamentais e não governamentais competentes, e uma vez definidas as posses, cancelamento dos registros de imóveis emitidos em nome da empresa.
De acordo com Ismael Moraes, “isto é um escândalo, típico de grilagem oficial, praticado pelo ITERPA em favor de uma empresa particular e em total detrimento aos direitos de populações tradicionais cujos direitos humanos foram violados pelo aparelho policial do Estado e pistoleiros da empresa, que expulsam, intimidam e ameaçam famílias nas terras onde elas sempre viveram e dela tiram o próprio sustento”.
Moraes acrescenta ter havido “fraude e nulidade de pleno direito” na emissão dos títulos. As terras foram vendidas pelo Estado para ABC em 1977, e pelo Código de Processo Civil, o direito para propor ação de cancelamento de registro já prescreveu há mais de 15 anos. Mas os direitos humanos dos ribeirinhos são imprescritíveis. E o argumento principal é de que a República Federativa do Brasil, da qual o Pará faz parte, e a União Federal, respeitam tratados e convenções internacionais de direitos humanos que são signatários.
É curioso verificar que o próprio diretor do Departamento Jurídico do ITERPA, Flávio Manso, em entrevista ao jornalista Carlos Mendes, tenha dito que o órgão iria se defender, “mas não da maneira como a ação civil pública impetrada por ribeirinhos da área vendida pelo Estado à empresa ABC estava colocada na Justiça Federal”.
A preocupação do ITERPA seria “equacionar o passivo fundiário” de Portel. Em termos jurídicos, há indícios de violação à norma constitucional que limitava a alienação de terra da União e do Estado a três mil hectares. A autorização para a venda de terra acima desse limite teria que ser feita pelo Senado.
A violação própria da norma constitucional não prescreve, e o ITERPA criou uma comissão para analisar a fraude que permitiu à empresa ABC adquirir mais de 240 mil hectares na região. “A aquisição foi feita pela interposição de outras pessoas. O ato, portanto, foi inconstitucional”. “O ITERPA, no seu entendimento, poderia, por intermédio do artigo 15 das disposições transitórias da Constituição Estadual, convalidar a venda das terras de Portel e enviar o caso para o Congresso Nacional”.
O Estado vai defender a licitação, entendendo que se houve fraude ela foi praticada pelo agente privado. “Os laranjas concentraram essas terras no nome de uma empresa. Agora, se este ato é nulo ou anulável, Manso não vê problema nenhum”. “Caso o Congresso Nacional convalide esse ato, problema dele” (isto nos remete a Poncio Pilatos...). A Constituição permite que o Estado faça a revisão de todos os títulos de terra expedidos até 1952. Essa revisão só cabe ao próprio Estado.
Lamentavelmente, o ITERPA não considera no mérito a questão que envolve direitos humanos, tida como ponto pacífico, conforme declarado pelo próprio representante do órgão fundiário à imprensa. As citações demonstram a intensidade e natureza dos “esforços” institucionais e poderiam explicar as razões pelas quais empresas “comprometidas com atividades legais sustentáveis”, “certificadas com Selo Verde”, continuem com um lugar garantido no presente e no futuro, apesar das graves denúncias e da mencionada ação judicial interposta. O principal desafio continuará sendo o de fazer valer o poder - e principalmente o dever - de o Estado perseguir e alcançar a verdadeira justiça, fundiária, social e ambiental.
Pelas evidências, não surpreende que a certificação florestal da Fazenda Jutaituba, com uma área total de 108.241 hectares, onde são colhidas mais de 60 espécies nativas, as mais importantes Angelim, Cupiuba, Fava, Ipê, Jatobá, Maçaranduba, Piquiarana, Tachi e Tatajuba tenha sido um processo voluntário em que foi realizada avaliação do empreendimento da CIKEL BRASIL VERDE S/A por uma organização independente, a certificadora SCIENTIFIC CERTIFICATION SYSTEMS - SCS, que verificou o “cumprimento de questões ambientais, econômicas e sociais que fazem parte dos Princípios do FSC”.
O FSC, sigla em inglês que significa Forest Stewardship Council, ou Conselho de Manejo Florestal, é uma entidade internacional que credencia organizações certificadoras de modo a garantir a “autenticidade” de suas declarações. Cabe às certificadoras avaliar operações de manejo florestal ou de cadeias de custódia para conceder o uso do selo FSC nos produtos, e auditar as operações certificadas, sejam de manejo florestal ou de cadeia de custódia.
Não surpreende que caiba à certificadora especificar e cobrar por este serviço, mais ainda: para candidatar-se à certificação, devam ser atendidos Princípios e Critérios, dentre os quais se destacam a obediência às leis e aos princípios do FSC. O manejo florestal deve respeitar todas as leis aplicáveis ao país aonde opera os tratados internacionais e acordos assinados por este país.
Outro critério avaliado na certificação se refere às responsabilidades e direitos de posse e uso da terra. Os direitos de posse e uso de longo prazo relativos à terra e aos recursos florestais devem ser claramente definidos, documentados e legalmente estabelecidos, devendo ser demonstrada, também, clara evidência quanto aos direitos de uso dos recursos florestais de longo prazo relativos à terra, por exemplo: título da terra, direitos costumários adquiridos ou contratos de arrendamento.
É surpreendente que as comunidades locais, com direitos legais e costumários de uso e de posse da terra, devam, segundo esses mesmos critérios e princípios, manter controle sobre as atividades florestais na extensão necessária para proteger seus direitos ou recursos, a menos que deleguem este controle a terceiros, de forma livre e consciente.
É surpreendente que devam ser adotados mecanismos apropriados para a resolução de disputas sobre reivindicações de posse e direitos de uso da terra. As circunstâncias e o status de quaisquer disputas pendentes devem ser explicitamente considerados na avaliação da certificação. É surpreendente verificar que disputas de magnitude substancial, envolvendo um número significativo de interesses, apesar das evidências e de constarem no próprio relatório de certificação, não tenham desqualificado a operação florestal de ser certificada.
Outro critério de certificação se refere às Relações Comunitárias e Direitos dos Trabalhadores. É surpreendente que as atividades de manejo florestal devam manter ou ampliar o bem estar econômico e social de longo prazo dos trabalhadores florestais e das comunidades locais.
Recomenda-se, ainda, que sejam dadas às comunidades inseridas ou adjacentes à área de manejo florestal oportunidades de emprego, treinamento e outros serviços. É surpreendente que o planejamento e a implantação de operações de manejo florestal devam incorporar resultados de avaliações de impacto social e que devam ser mantidos processos de consulta com as pessoas e grupos diretamente afetados pelas operações de planejamento.
Devem ser adotados mecanismos apropriados para resolver queixas e providenciar compensações justas em caso de perdas ou danos que afetem os direitos legais ou costumários, a propriedade, os recursos, ou o meio de vida das populações locais, e devem ser tomadas medidas para evitar tais perdas ou danos.
É surpreendente, diante dos fatos, que o FSC Internacional - FSC IC estabeleça, dentre outras, as regras acima citadas, para credenciamento de certificadoras responsáveis pela liberação do selo FSC, para garantir a credibilidade e acompanhar a evolução da certificação no mundo, e que as certificadoras sejam monitoradas constantemente pelo FSC IC.
Verifica-se no Relatório de Certificação do FSC, que o processo de certificação da CIKEL – Fazenda Jutaituba “pressupôs a realização de consultas públicas para os cidadãos e as mais diversas instâncias da sociedade civil organizada, direta ou indiretamente, interessadas no assunto”. Deste modo, “foram enviadas informações acerca do processo de Certificação que se estava iniciando, juntamente com um questionário, para diversos representantes de entidades, em todo o Brasil, com solicitação para que o processo fosse divulgado a todos os conhecidos”.
A área da fazenda Jutaituba é de Propriedade da Empresa Martins Agropecuária (Grupo Martins), e fica localizada no município de Portel, possui uma área total legalizada de 141.055,7 ha. A área total da fazenda é de 164.520 ha, porém os outros lotes estão em processo de legalização. As áreas com cobertura florestal para efetivo manejo somam 108.241,5 ha.
A fazenda faz limite ao norte com a fazenda ABC, ao sul com o município de Tucuruí, ao leste com o município de Bagre e Oeiras do Pará; e a oeste com o rio Pacajá. A sede da fazenda está localizada à margem direita do rio Pacajá. A área da Fazenda Jutaituba é considerada como uma das áreas mais bem preservadas de toda a região.
Em 2001, o grupo Martins abriu concorrência pública para arrendar a área visando à exploração florestal de forma sustentada. As empresas candidatas deveriam certificar a área de manejo e atender uma série de exigências, quanto à capacidade técnica, gerencial, etc. Durante o processo participaram 11 empresas, e o grupo CIKEL foi o vencedor face ao “know how” da empresa no setor florestal.
No caso específico da SCS, optou-se, pela realização de duas Reuniões Públicas, em local próximo ou de melhor acesso à área Certificada. No caso, foram realizadas em Tucuruí/PA. A primeira reunião teve por objetivo apresentar o que é a Certificação do FSC, assim como a empresa que pretendia ter a área Certificada apresentou-se institucionalmente, perante a sociedade, da mesma forma como o seu Plano de Manejo.
Numa Segunda Reunião Pública, sem a participação da empresa requerente, a SCS novamente convidou as instituições conhecidas ou interessadas, e aquelas que participaram da Primeira reunião, para colher as “preocupações públicas” acerca do processo de Certificação que estava sendo avaliado.
No caso específico da questão atinente às comunidades do rio Camarapi, no município de Portel, é surpreendente verificar que ela surgiu quando da realização da Segunda Reunião Pública, no final de 2002, em Tucuruí. Tratam-se de populações que vivem dentro da área da fazenda ABC, pertencente à empresa ABC Algar, e que foi arrendada pela CIKEL, para a exploração florestal.
“Essa área em questão, na realidade, não estaria sendo objeto de Certificação do FSC”, segundo o relatório, visto que “não tinha qualquer relação com a Fazenda Jutaituba”, de propriedade da Martins Agropecuária, e arrendada pela CIKEL, “sendo apenas áreas vizinhas”. Assim, é surpreendente verificar que a SCS tomou conhecimento, poucos dias antes da realização da Segunda Reunião, através do advogado que representava o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Portel, que havia uma grave questão social, envolvendo a ABC, a CIKEL, e as populações ribeirinhas moradoras do rio Camarapi.
Dessa forma, embora não tendo havido um convite formal, essa população teria sido representada por diversos cidadãos que se dirigiram a Tucuruí e teriam manifestado livremente as suas sugestões. Somando-se a tal fato, e por solicitação dos presentes, foi realizada uma Reunião Pública, especificamente em Portel, no dia 05/09/2003, com a participação de diversos moradores dessas e outras comunidades.
Da mesma forma, teriam sido entrevistados diversos líderes nas próprias comunidades, juntamente com o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Portel, Sr. Cametá, profundo conhecedor da área, desenvolvendo, inclusive, exploração florestal em área próxima. Dessa forma, essas populações teriam tido espaço para se manifestar, bem como teriam sido ouvidas suas demandas, cujo encaminhamento de solução seria tratado a seguir.
A questão social atinente às populações citadas teria sido objeto de extremo cuidado e atenção, desde que a SCS tomou conhecimento do problema, ainda no ano de 2002. “O caso específico dos moradores do rio Camarapi e Pacajá, relaciona-se com a fazenda ABC que, como foi ressaltado anteriormente, não é objeto de Certificação do FSC”, muito embora a CIKEL tenha envolvimento por ter arrendado a área. “Trata-se de questão fundiária, porquanto populações vivem dentro da ‘propriedade da empresa’”.
É surpreendente observar que os auditores da SCS reconhecem, mesmo considerando não haver relação com a Fazenda Jutaituba – objetivo da avaliação – que os problemas com essas populações deveriam ter um “encaminhamento imediato para a solução definitiva, por envolverem responsabilidade social por parte da CIKEL”.
Assim, após as reuniões com os moradores e representantes, foram apresentadas as providências que seriam tomadas, antes de concluído o processo de Certificação do FSC: i) “Apresentação de um Plano de apoio à regularização fundiária das comunidades vizinhas à Fazenda Pacajá/ABC, com metas e cronograma”; ii) “Apresentação de Plano de Ação Social para as comunidades vizinhas à Fazenda Pacajá/ABC, com metas e cronograma e orçamento”.
Desse modo, a CIKEL teria intermediado e a ABC Algar apresentado os referidos Programas, os quais, com o transcurso de cerca de seis anos, já devem ter sido postos em prática. Saliente-se que qualquer negociação para a regularização fundiária requeria tempo, e “a Certificação do FSC, certamente, teria sido um fator decisivo para que a solução pudesse ser posta em prática”.
Caberia aos auditores o acompanhamento rigoroso desse processo, a fim de averiguar sua efetividade, visto que o principal interesse é promover o bem estar e melhorias de vida dessas populações. Somando-se a isso, a CIKEL estaria “desenvolvendo trabalhos conjuntos com ONG’s de reconhecida respeitabilidade, como IMAZON e GTNA/IIEB, para encontrarem propostas de atuação na área em questão”, com objetivo de promoverem um “incremento nas condições de vida local e alternativas econômicas”.
Mais recentemente, houve reuniões com a FASE Gurupá. No caso específico dos moradores do rio Jacundá, e também dos rios Açu e Pacajá, e que envolve a propriedade da Martins Agropecuária, objeto de Certificação, envolvem também quilombolas. Para tais casos, foi exigida pelos auditores uma carta compromisso de que as áreas atualmente ocupadas por essas populações deveriam ser respeitadas, assim como estaria em negociação à doação de uma área para o quilombo Balieiro. São aspectos, dentre outros, que deveriam ser averiguados ‘in loco’, e conferidos através de auditorias ambientais independentes, a iniciar com os “tocos” nas respectivas áreas de extração...
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