quinta-feira, 16 de abril de 2009

O futuro do consumismo

Por Rob Harrison*, para a revista Im))pactus

O séc. XXI será o século da ética, ou então não será de todo.” - André Malreaux

Não há nada como uma situação de quase colapso do sector bancário internacional para reflectirmos noutras formas de gerir as sociedades humanas, diferentes da actual que é dominada pelas empresas que têm como objectivo o lucro. Seria provável que um mundo repleto de bancos éticos tivesse sido apanhado no frenesi que deu origem à actual recessão? Estes, muito simplesmente, não têm enraizado no seu âmago a ganância para obter bónus e dividendos cada vez mais elevados. De facto, o colapso levanos a questionar de forma aprofundada o plano do capitalismo internacional na sua totalidade… que é precisamente onde entra em cena o consumo ético.

Por um lado, o consumo ético consiste na descoberta de soluções práticas para problemas imediatos, tais como a desflorestação ilegal ou a pobreza nas regiões produtoras de café de todo o mundo. Por outro lado, consiste numa visão do futuro… que envolve um ideal diferente em relação ao habitual modelo empresarial que pretende manter o status quo e que é dominado por empresas que têm como objectivo o lucro. A revista “Ethical Consumer” avalia os produtos éticos de uma forma singular, dado que contabiliza todas as actividades desenvolvidas pelas empresas que os produzem. Tentando apresentar aos consumidores uma análise mais aprofundada que lhes permita agir, se assim desejarem, de forma a apoiar as organizações que não têm como único objectivo o lucro.

Como seria o mundo se a maior empresa de vestuário fosse única e exclusivamente de Comércio Justo e se os maiores supermercados vendessem apenas e só produtos orgânicos? E se os construtores de edifícios sem emissões de dióxido de carbono substituíssem os habituais construtores e a energia pudesse ser produzida por empresas que recorrem apenas às energias renováveis? Poderia a linguagem simples do lucro e ganhos pessoais ser substituída por outra que apreciasse e tivesse em consideração outros valores, tais como a sustentabilidade e o bem comum? Será que tais alterações afectariam, na sua essência, a forma como as pessoas pensam e se comportam relativamente às outras?

A revista “Ethical Consumer”

Uma das razões pela qual nos sentimos atraídos pelo projecto “Ethical Consumer”, nos anos 80, foi o facto de parecer abordar uma “falha estrutural do capitalismo”. Apesar da ajuda proporcionar algum alívio à pobreza e da regulamentação estatal conseguir dominar alguns poluidores, havia uma preocupação latente de que essas abordagens se limitavam a tratar os sintomas e não as causas.

Mas, num mercado global, as empresas limitaram-se a deslocar para países com medidas de controlo ambiental menos dispendiosas ou continuaram a apoiar regimes opressivos que lhes vendiam recursos minerais a preços extremamente reduzidos. Nessa época, tal como agora, havia algo na forma de funcionamento dos mercados que parecia estar a premiar os produtores menos éticos e a punir os melhores. Existia uma sensação disseminada de falha do sistema.

Abordar a cultura da compra bens e serviços de acordo com um único critério - o preço -, apesar de aparentemente ser uma tarefa quixotesca, parecia ir ao cerne de alguns dos problemas sistémicos que podíamos observar. Se a maioria dos consumidores efectuasse outro género de perguntas para além de “quanto custa?”, então a tendência para recompensar o mais eficiente empregador de trabalho infantil acabaria por desaparecer.

No entanto, a revista “Ethical Consumer” teve início no auge do Thatcherismo, no Reino Unido (RU). A linguagem do preço encontrava-se disseminada por toda a parte, e em claro ascendente. As empresas estatais eram privatizadas e os mercados aclamados à medida que se introduziam em novas áreas, tais como as pensões, a educação e a saúde. E, ao mesmo tempo que os mercados se centravam cada vez mais na questão do preço, a linguagem da ética e dos valores sociais foi progressivamente desaparecendo dos debates diários.

Contudo, o aspecto positivo desta questão é que a “Ethical Consumer” não foi a única a identificar estes problemas sistémicos. Era parte integrante de um movimento que começava a contrariar a tendência de afastar a ética de todas as áreas agora ocupadas pelas empresas e pela economia.

Medir o crescimento

Ao longo dos anos, compilámos inúmeros dados relativos a inquéritos para demonstrar que, talvez surpreendentemente, a maioria dos consumidores afirma estar a agir de forma ética nos mercados, pelo menos parcialmente. [1] Actualmente efectuamos uma medição anual do estado dos mercados éticos do RU, compilada pelo Ethical Purchasing Índex (Índice Ético de Aquisições) do Banco Co-op. Esta medição, apesar de revelar que £25.8 mil milhões são dirigidos à ética (apenas £9.2 mil milhões em 1999), a base de referência é baixa e na maioria dos mercados os produtos éticos perfazem apenas 5% das vendas. [2]

No entanto, os inquéritos realizados por todo o mundo revelam um interesse generalizado nas questões relacionadas com o consumo ético e começam a surgir projecções sobre mercados predominantemente éticos provenientes dos locais menos esperados. Em Novembro de 2005, por exemplo, um porta-voz da Kraft General Foods (a segunda maior multinacional na área alimentar) previu que no prazo de 10 anos, 60 a 80 por cento do mercado europeu do café seria dominado por produtos com certificação independente de comércio justo.

Será que estamos perto de atingir um “ponto de viragem” na adopção da cultura ética, em que esta sofrerá um aumento exponencial, ou estarão os produtos éticos condenados a ser um nicho de mercado? Existem quatro factores fundamentais que indiciam um domínio cultural da ética e que importa destacar: as grandes empresas, as grandes opções dos governos, as grandes associações de consumidores e o grande aumento do petróleo.

As grandes empresas

Nos últimos dez anos houve uma evolução gigantesca na compreensão que o público em geral demonstra relativamente aos comportamentos nocivos para o ambiente, por parte das grandes empresas. Tal facto ficou a dever-se, pelo menos em parte, aos protestos emblemáticos anti-globalização (actualmente designados por justiça global). Outras intervenções culturais dignas de registo incluem o excelente filme e livro de Joel Bakan, “The Corporation”, que demonstra uma vez mais a natureza patologicamente destrutiva resultante do comportamento de maximização do lucro. [4]

Ao mesmo tempo, e com consequências discutíveis, houve um passo das grandes empresas na direcção dos mercados éticos. Para os leitores do RU, talvez este possa ser personificado pela aquisição da Green & Blacks pela Cadbury’s, e é esta mudança, acima de qualquer outra, que faz com que as quotas de mercado para os produtos éticos se tornem muito prováveis. As grandes empresas possuem os recursos e o acesso a mercados que lhes possibilitam a distribuição de produtos éticos de elevada qualidade, a preços competitivos e de forma rápida, por todo o mundo. Como é óbvio, ainda se desconhece se esta mudança é inequivocamente positiva, e muito do nosso planeamento futuro na Ethical Consumer Research Association (ECRA) está direccionado para a melhor resposta a dar a estas transformações.

Por fim, e apesar de muita Responsabilidade Social das Empresas (RSE) continuar a ser greenwash, deu-se um rápido desenvolvimento de ideias e ferramentas que abordam a questão da RSE a um nível bastante aprofundado. Ao fim de dez anos de programas de RSE em algumas empresas, alguns ambientalistas de reputação inquestionável - como por exemplo, Jonathan Porritt - argumentam que existe uma grande diferença entre as melhores e as piores multinacionais em relação à ética. [5] A velha certeza - de que todas as grandes empresas são igualmente más - é cada vez menos credível, tornando as aquisições éticas uma ferramenta ainda mais eficaz para a mudança.

As grandes opções dos governos

Até à data, o governo britânico tem um atrasado, de dez anos no mínimo, relativamente aos seus próprios cidadãos face à incorporação da ética nas decisões de aquisições. Em 2001, a ECRA publicou o “Manifesto pela Mudança” que delineava em pormenor algumas das mudanças que acreditamos que o governo britânico deve implementar para evoluirmos para uma sociedade mais orientada para a ética. [13]

No manifesto, e em inúmeras consultas que se seguiram, argumentámos que tornar as cadeias de fornecimento do governo mais ecológicas poderia funcionar como um percursor fundamental no sentido de exortar os consumidores a agir de uma forma sustentável. Como é possível esperar que os consumidores levem a sério o consumo sustentável quando é óbvio que o governo não dá o exemplo?

Finalmente, parecem estar a ocorrer algumas mudanças nas políticas governamentais de aquisições, não só no RU mas também na Europa. Mudanças de relevo que eliminam os ridículos obstáculos legais às aquisições éticas que impediram, até ao momento, o desenvolvimento nesta área. A mudança cultural de que falamos conduziu nitidamente a uma posição em que ninguém está preparado para argumentar, tal como na era Thatcher, que as aquisições éticas são um pernicioso obstáculo ao comércio livre. Independentemente da situação, as aquisições éticas vão aumentar de forma significativa na Europa, durante os próximos três anos, o que por sua vez levará as grandes empresas a agir de forma ainda mais rápida na direcção correcta.

As grandes associações de consumidores

A outra mudança significativa que teve lugar desde a nossa última revisão foram as movimentações das grandes associações de consumidores europeias no sentido de introduzir notações éticas empresariais relativas ao consumo, em alguns dos seus guias do consumidor.

“A empresa austríaca VKI foi a primeira a agir através da publicação, em Outubro de 2000, da notação ética de fabricantes de sapatos desportivos na sua revista Konsument. A notação fez manchete nos media austríacos e foi acompanhada por um enorme fluxo de reacções, tanto por parte das empresas como por parte dos consumidores”. [7]

Estas associações de consumidores, frequentemente com mais de meio milhão de membros cada, podem exercer muito mais pressão nos mercados do que modestas publicações, como a “Ethical Consumer”. Para além disso, as associações de consumidores coordenam com frequência a investigação e as publicações através de uma associação - a International Consumer Research & Testing (ICRT). Em Fevereiro de 2002, as associações de consumidores da Áustria, Dinamarca, Finlândia, Noruega, Suécia e Islândia publicaram em simultâneo um relatório acerca do comportamento ético dos fabricantes de calças de ganga - pressionando-os no sentido da mudança. [7]

A associação holandesa do consumidor, Consumentenbond, tornou-se uma das primeiras a liderar nesta matéria, através de inúmeras medidas no sentido da integração da RSE em todos os seus relatórios. Desde então, muito ímpeto proveio de um grupo constituído por quatro associações que incluem Bélgica, Portugal, Itália e Espanha. Este grupo coordenou a publicação de inúmeros estudos, em particular dois sobre petróleo e chocolate, em 2005. [8] Também em 2005, a associação alemã de direitos do consumidor, Stiftung Warentest, iniciou as suas intervenções nesta matéria através da publicação de relatórios éticos sobre detergentes, salmão e casacos.

Talvez surpreendentemente uma das mais lentas a reagir neste domínio foi a revista britânica “Which?”. Apesar de efectuar algumas incursões ocasionais em matéria de ética, revelou-se, entre todas as associações europeias de consumidores, a mais avessa ao risco. No entanto, com o passar do tempo e devido às mais recentes evoluções culturais que têm ocorrido um pouco por todo o mundo, tornar-se- á cada vez mais difícil às principais associações de consumidores defenderem intelectualmente a continuação da publicação de relatórios com base única e exclusivamente na relação qualidade/preço. Ao fazê-lo estarão a fugir à responsabilidade perante as externalidades ambientais e sociais que sairão necessariamente beneficiadas com um tal aconselhamento. Perante uma situação futura em que provavelmente todas as associações de consumidores incluirão notações éticas de consumo nos seus relatórios, a pressão no sentido da mudança irá aumentar significativamente.

O grande aumento do petróleo

O último factor de debate consiste na emergência de novos argumentos que sugerem que os efeitos mais profundos do estilo de vida insustentável das sociedades ocidentais se encontram, não num futuro longínquo, mas antes ao virar da esquina. Jeremy Leggett, por exemplo, sugere no seu livro “Half Gone” que o aumento da procura e a diminuição da oferta de petróleo conduzirá a uma subida em flecha dos custos com a energia nos próximos 5 a 10 anos. [9]

Com um preço do petróleo entre os 10 e os 40 euros por galão [14], os consumidores não só seriam forçados a tomar decisões no sentido do consumo sustentável a um ritmo impossível de alcançar através da exortação moral, como para além disso, e de acordo com o que é previsto por Legget, várias economias, na sua totalidade, sejam devastadas devido a profundos efeitos sociais no curto espaço de quatro anos. Se tais factos vierem a ocorrer, e já estamos a vislumbrar alguns indícios do aumento significativo do custo do petróleo, isso contribuirá para o aumento da credibilidade política dos ambientalistas que têm vindo a prever esses mesmos resultados há já algum tempo. Isto é, na realidade, o que se passou no final dos anos 80 após as notícias de Chernobyl e do buraco na camada de ozono.

Como é óbvio, e a julgar pela prevista perturbação social e um ambiente de escassez, parece que a cultura e a linguagem da ética chegaram mesmo a tempo. De facto, existem alguns indícios que sugerem que com as correctas ferramentas culturais, um futuro de maior escassez material poderá conduzir a sociedades mais felizes, abnegadas, inclusivas e centradas na comunidade. [10]

Quer os próximos dez anos tragam uma era nuclear, mais biotecnologia e nanotecnologia ou, muito simplesmente, uma injustiça grosseira, as pessoas não podem pressionar de forma eficaz no sentido da mudança se simultaneamente continuam a financiar os seus mais perniciosos opositores, através da aquisição dos seus produtos.

Enquanto os mercados permanecerem globalizados, os consumidores terão de efectuar uma análise para além do preço de modo a impedir as empresas mais perniciosas de assumirem o controlo e, nesse percurso, “capturarem” governos eleitos democraticamente. [11]

NOTAS

[1] Ethical Consumer, edição 50 - “The rise and rise of ethical consumerism”. ECRA, Dezembro
de 1997.

[2] Banco Co-operative - “Ethical Consumerism Report”, 12 de Dezembro de 2005.

[3] Annemieke Wijn (Kraft Foods). Discurso na Conferência TBLI em Frankfurt, 3 de Novembro de 2005.

[4] “The Corporation”. Joel Bakan, Free Press, 2004.

[5] “Capitalism as if the world matters”. Jonathan Porritt, Earthscan, 2005.

[6] ENDS Report 370 - “Morely rejects green procurement targets for councils”, Novembro de 2005

[7] “Corporate Social Responsibility and the Consumer Movement”. Rob Harrison, crítica à política do consumidor, Julho/Agosto de 2003, Volume 13, Nº4.

[8] Conversa telefónica com Andrea Klag na ICRT. 6 de Março de 2006.

[9] “Half Gone”. Jeremy Leggett, Portobello Books, 2005.

[10] Consulte o número 5 - Jonathan Porritt.

[11] Para um debate sobre o modo através do qual as empresas “capturam” os governos democráticos, consulte “Captive State”. George Monbiot. Macmillan, 2000.

[12] André Malraux foi escritor, filósofo e Ministro francês dos Assuntos Culturais entre 1958 e 1969.

[13] “The ECRA 2001 Manifesto for Change”. Ethical Consumer, edição 70, Setembro de 2001 e em www.ethicalconsumer.org/aboutec/manifesto.htm.

[14] Consulte as imagens em www.lifeaftertheoilcrash.net/, visualizadas a 12 de Março de 2006.

* Rob Harrison é editor da revista britânica “Ethical Consumer”. Este artigo é uma versão editada e actualizada de uma crítica de Rob Harrison ao desenvolvimento do consumo ético, publicada pela primeira vez na 100ª edição da revista “Ethical Consumer”, referente aos meses de Maio e Junho de 2006. Para informações adicionais em relação à revista “Ethical Consumer“.

Publicado originalmente pela revista Im))pactus

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