Por Maurício Hashizume, da Repórter Brasil
Participantes apoiaram apelo da senadora Marina Silva (PT-AC) para que o presidente Lula vete "os dispositivos mais danosos" da MP 458/09. Atmosfera de contradições caracterizou plenária sobre impacto de cadeias produtivas.
São Paulo (SP) - Entre plenárias, mesas redondas, estandes publicitários de grandes corporações privadas e muita gente alinhada, o ato público contra o desmonte da legislação ambiental brasileira conferiu ares de mobilização de caráter cidadão à Conferência Internacional Ethos 2009.
Realizada na tarde desta quinta-feira (18), a manifestação mobilizou agentes corporativos, organizações da sociedade civil, parlamentares e membros do governo para protestar contra a Medida Provisória (MP) 458/09 - a "MP da Grilagem" -, que legaliza terras públicas na Amazônia com até 1,5 mil hectares, sem licitação, aprovada no Congresso Nacional.
Os participantes apoiaram os apelos da senadora Marina Silva (PT-AC) ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva para que "os dispositivos mais danosos" da MP 458/08 sejam vetados (leia especial: "Fazenda Amazônia").
Ex-ministra do Meio Ambiente (2003-2008), Marina Silva pede que pelo menos três artigos da "MP da Grilagem" não sejam sancionados: a regularização de imóveis amazônicos de ocupação e exploração indiretas, isto é, por terceiros que não sejam os próprios ocupantes (incisos II e IV do art. 2º); o direito de preferência estendido às pessoas jurídicas, a quem já possui terras e para ocupantes indiretos (art. 7º); e a dispensa da vistoria prévia para a regularização de imóveis de até quatro módulos fiscais (art. 13).
"A aprovação, no Congresso Nacional, da MP 458, conhecida como MP da Grilagem - que, entre outras medidas, promove a legalização de terras ilegais, é a mais recente demonstração de que há um projeto em andamento para desmontar a agenda ambiental, duramente conquistada nos últimos anos e que dá ao Brasil posição privilegiada para enfrentar as conseqüências das mudanças climáticas", pontua o texto da carta aberta à sociedade que emergiu do ato e foi encaminhada à Presidência da República.
A carta divulgada realça ainda a "enorme importância" do Brasil no mundo "por ser um dos países com maior patrimônio ambiental ainda preservado e, portanto, com maior potencial de desenvolvimento econômico e social sustentável". Além dos vetos, o ato ainda conclamou: o presidente Lula a assumir a liderança da agenda ambiental como central na estratégia do desenvolvimento social e econômico do Brasil; o Congresso Nacional a assumir sua responsabilidade frente à agenda ambiental brasileira; as empresas a incorporar a agenda ambiental como estratégia de seus negócios.
O documento frisa a "enorme perplexidade" com a existência, "no início de um novo século, com os desafios que temos", de "políticos e empresários descomprometidos que se apropriam do Estado para benefício particular, privilegiando o lucro imediato à custa do interesse maior da nação brasileira".
Manifestações
Diversos integrantes de entidades empresariais e de organização não-governamentais (ONGs) reforçaram a manifestação. A importância da priorização do "desmatamento zero" para a região, a necessidade de exigência de contrapartidas (como planos de manejo) dos beneficiados pela MP 458, a urgência na busca por alternativas econômicas ao desmatamento, a existência de normas legais para impedir a legalização de terras em que crimes foram flagrados e a contradição entre o discurso internacional brasileiro e as políticas internas que devastam "em nome do progresso" foram algumas das questões levantadas durante o ato público em ambiente empresarial.
Júlio Barbosa, da Confederação Nacional dos Seringueiros (CNS), afirmou que as comunidades locais e os povos tradicionais da floresta são os principais atingidos por essa ofensiva à legislação ambiental. De acordo com ele, a MP da Grilagem influencia diretamente no aumento da pressão sobre ribeirinhos e na ação de novos "grileiros". A coincidência entre a "grilagem" de terras na Amazônia e a ocorrência de casos de trabalho escravo foi realçada por Leonardo Sakamoto, da ONG Repórter Brasil. Leonardo lembrou ainda de outros projetos importantes que estão parados à espera de votação no Parlamento - como a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 438/2001, que determina o confisco de terras onde houver trabalho escravo.
A senadora Marina Silva - que criticou os "setores arcaicos do empresariado" e a atuação de congressistas segundo interesses próprios e não em prol da população em geral - e o ministro Carlos Minc - que preferiu enfatizar os aspectos de "avanço" do governo no campo ambiental - gravaram depoimentos que foram transmitidos durante a manifestação.
A ofensiva do bloco ruralista, salientou Ivo Bucaresky, chefe de gabinete do Ministério do Meio Ambiente (MMA), se intensificou a partir do momento em que o Código Florestal passou a ser exigido na prática, por meio de medidas como a Resolução 3.545 do Conselho Monetário Nacional (CMN) - que impõe restrições de crédito a produtores que não dispõe de documentos fundiários e ambientais - e a edição de decretos presidenciais mais severos. A aprovação de um conjunto de leis mais flexíveis no âmbito estadual em Santa Catarina pode provocar uma crise do pacto federativo, emendou Ivo. "Defender o Código [Florestal] é defender a unidade do país", completou.
Cadeias produtivas
Os riscos da MP da Grilagem já tinham sido tratados na plenária acerca da relação das cadeias produtivas com os biomas brasileiros, em especial o amazônico, que fez parte da programação da Conferência Internacional Ethos 2009 (convocada sob o tema "Rumo a uma Nova Economia Global: a Transformação das Pessoas, das Empresas e da Sociedade").
"Brasília não é a capital dos ambientalistas. É a capital dos lobbies", comentou Samyra Crespo, secretária de Articulação Social e Cidadania Ambiental do MMA, que foi uma das palestrantes da atividade realizada na última terça-feira (16). "Estamos medindo forças com um gigante", completou.
Para Samyra, os embates relativos aos impactos sociais e ambientais de grandes obras que fazem parte do Programa de Aceleração ao Crescimento (PAC), coordenado pela Casa Civil, são provas da contradição que reina entre os diferentes ministérios. Nesse sentido, ela declara que "o que o MMA faz com uma mão" no sentido da sustentabilidade, muitas vezes é desfeito "com outra mão" por outros setores do governo. "Não somos nós que sustentamos essa política agrária equivocada".
A secretária do MMA cita outro exemplo. Documento de 250 páginas sobre "como sair da crise", elaborado pelo Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), colegiado com representantes da sociedade civil ligado à Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República, traz apenas um tópico dedicado à agroenergia, mais especificamente sobre etanol. E mais nada sobre temas relacionados à agenda ambiental.
Nesse oceano de contradições, comentou Hélio Mattar, do Instituto Akatu, "resistir é extraordinariamente importante". Hélio fez o papel de mediador da plenária, que contou ainda com as apresentações de Marcio Santilli, sócio-fundador do Instituto Socioambiental (ISA), e Luiz Fernando Furlan, presidente do Conselho de Administração da Sadia (que se fundiu com a Perdigão na Brasil Foods) e da Fundação Amazonas Sustentável.
Como subsídio ao debate, Hélio Mattar destacou o trabalho Conexões Sustentáveis São Paulo - Amazônia: Quem se beneficia com a destruição da Amazônia?, elaborado pela Repórter Brasil e pela Papel Social, em outubro do ano passado. Os resultados das investigações deram base para a assinatura de três pactos setoriais com vistas a compras que impliquem na redução de impactos nos setores da soja, da madeira e da carne bovina, além de um compromisso assinado pelos candidatos à Prefeitura de São Paulo.
A edição de junho da publicação Observatório Social em Revista apresenta desdobramentos dessas investigações e revela as ligações entre madeireiras flagradas cometendo crimes ambientais e o mercado internacional. Para se ter uma idéia, existem elos comerciais entre empresas acusadas de fraude no Pará com companhias estrangeiras que fornecem madeira para programas televisivos de reconstrução de moradias nos Estados Unidos.
Chapéus
A presença do ex-titular do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (MDIC), Luiz Fernando Furlan, foi a síntese da atmosfera contraditória que se espalhou pela plenária. De início, ele brincou com os "dois chapéus" (um de empresário e outro de representante do terceiro setor) que tinha sobre a cabeça. Ao longo da plenária, foi cobrado a respeito do terceiro chapéu (como ex-integrante do governo Lula) que também já utilizou.
Mesmo diante das inúmeras responsabilidades referentes à empresa que atualmente dirige e ao cargo público que ocupou, Luiz Fernando Furlan concentrou suas falas na função que exerce como presidente da Fundação Amazonas Sustentável. A iniciativa desenvolvida no estado do Amazonas, em parceria com o governo estadual e com outras empresas como o Banco Bradesco, visa preservar as 35 Unidades de Conservação (UCs) do território do Amazonas, que soma cerca de 16,5 milhões de hectares, e atende cerca de 10 mil famílias de ribeirinhos que vivem na floresta.
Depois de reiterar resultados de pesquisas recentes - como a de que os índices de desmatamento acompanham os preços do boi gordo e da soja e a de que os benefícios sociais do desmatamento são efêmeros, ambas do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) -, o ex-ministro não pôde negar a relação do agronegócio com o desmatamento, mas fez imediatamente uma ressalva de que "a maioria do agronegócio não é amazônico".
Sobre os possíveis impactos diretos e indiretos da empresa que dirige, Luiz Fernando disse apenas que dos dez estados em que a Sadia atua diretamente, apenas um ocupa a faixa de transição para a Amazônia (Mato Grosso). Destacou ainda o trabalho junto a 12 mil pequenos produtores em programas de reflorestamento, de tratamento de água, de reciclagem de resíduos e de geração de energia por meio do biogás. Existe um vínculo estreito entre o segmento alimentício da Brasil Foods e a produção de soja.
Longe da Esplanada dos Ministérios, ele chamou o Bioma Amazônia de "tesouro" e disse que água e ar deveriam ser considerados "ativos". Defendeu ainda alternativas econômicas como o financiamento da "extratoindústria". Segundo ele, são necessários recursos para que os moradores busquem o equilíbrio em atividades perenes e deixem de optar pelo desmatamento. Levantamento realizado pela Fundação Amazonas Sustentável identificou que apenas 12% dos homens da região atendida pela iniciativa tinham emprego fixo. Nas contas apresentadas pelo ex-ministro, é possível preservar um hectare de Floresta Amazônica com apenas R$ 20 por ano.
Mais especificamente sobre a sua participação no primeiro escalão do governo federal, Luiz Fernando Furlan se limitou a dizer que a composição ministerial corresponde a uma coalizão plural e que Lula "estimula o contraditório". "É uma ilusão achar que o governo pode resolver tudo", admitiu. "A agenda que anda é a do urgente, não a do importante", emendou. De fato, é provável que o I (de Indústria) e o C (de Comércio), que já estiveram sob sua responsabilidade quando ele era ministro, sempre sejam "urgentes", enquanto o D (de Desenvolvimento) nunca tenha passado de "importante".
*Colaborou Verena Glass
Crédito da imagem:Maurício Hashizume
(Envolverde/Repórter Brasil)
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