quinta-feira, 2 de julho de 2009

Intolerância religiosa no Brasil é denunciada nas Nações Unidas


Por Fabiana Frayssinet, da IPS

A yaloriyá Gilda morreu de infarto fulminante em 1999 depois que membros de uma igreja neopentecostal invadiram seu templo e a acertaram na cabeça com uma Bíblia. É a imagem mais crua e sintética da intolerância religiosa que cresce no Brasil e que acaba de ser denunciada na Organização das Nações Unidas. Este sectarismo se expressa especialmente contra as religiões de origem africana, como no caso da sacerdotisa do candomblé Gilda, segundo o informe que a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR) entregou esta semana a Martin Uhomoibai, presidente do Conselho de Direitos Humanos da ONU. Mas, também se manifesta contra outros cultos, como o judeu, o católico, o espírita e o muçulmano.

O documento apresentado por uma comissão multissetorial e de diferentes credos, relatando 15 casos atendidos pela CCIR em quatro Estados brasileiros, acusa das agressões, perseguições e propagação da intolerância religiosa as igrejas neopentecostais, especialmente a Igreja Universal do Reino de Deus. No discurso de captação de fieis dessas igrejas, que se baseiam na “satanização” das religiões afro-brasileiras, também “os judeus se converteram nos “assassinos de Cristo”, católicos em “idólatras de demônios”, protestantes históricos são acusados de “falsos cristãos” e muçulmanos de “demoníacos” por seguir Maomé e não Jesus”, diz o documento.

A comissão foi criada há pouco mais de um ano e está formada por 18 instituições religiosas e defensoras dos direitos humanos, como a Federação Israelita do Rio de Janeiro, a Congregação Espírita de Umbandistas do Brasil e outras vinculadas às religiões protestante, católica, muçulmana, candomblé, budistas e grupos ciganos e indígenas. A CCIR surgiu da “necessidade cada vez mais urgente de defesa dos religiosos de origem africana, frente aos processos de aniquilamento e demonização de suas práticas religiosas”, explica o documento entregue à ONU.

O objetivo é que as Nações Unidas designem um investigador para comprovar as denúncias no País e também que o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva acelere seu “Plano Nacional de Combate à Intolerância Religiosa”, para enfrentar o que chamam de “um estado de ditadura religiosa”. O governo lançará um plano a respeito no começo do próximo ano. Ivanir dos Santos, presidente da comissão e do Centro de Populações Marginalizadas, explicou à IPS que essas igrejas têm um projeto de poder político, não apenas no Brasil, mas no resto da América Latina, onde se expandem.

Para Ivanir, esses grupos expressam o que o bispo Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus, diz em seu livro “Os cristãos e a política”, ou seja, que o objetivo é participar das eleições e “criar um Estado teocrático”. Trata-se, segundo Ivanir, de um grupo com muito poder, cargos no parlamento e no próprio governo, com alianças partidárias em todos os níveis, nacional, estadual e municipal.

Segundo a CCIR, as formas de intolerância religiosa vão desde invasões e destruição de templos, passando pela discriminação de crianças nas escolas e até agressões físicas. Entre outros mencionam a Igreja Renascer em Cristo, que segundo a denúncia “incita a invasão e depredação de templos espíritas, como ocorreu em um bairro do Rio de Janeiro em junho de 2008, com a destruição de todos os objetos litúrgicos e agressões aos fieis do Centro Espírita Cruz de Oxalá”. O “fascismo e o nazismo começaram assim, endemonizando uns e outros”, alertou o presidente da comissão.

Pesquisas indicam que 73% dos quase 190 milhões de brasileiros se declaram católicos, mas os grupos neopentecostais ganham espaço vertiginosamente. Nos últimos 60 anos passaram de 2,5 da população para 15,4% em 2000, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Mas, pode chegar a 30%, segundo cálculos dos próprios evangélicos. O IBGE também aponta que apenas 1,3% dos brasileiros declaram praticar algum culto de origem africana. Mas, Yaciara Ribeiro, filha de Gilda e seguidora de uma corrente do candomblé mais ortodoxa, afirma que há muito mais praticantes dessas religiões.

“Nem todo mundo pode assumir que segue essa religião. Muitos são católicos no domingo, mas na segunda estão no terreiro”, disse à IPS. Yaciara, agora também yaloriyá do centro de sua mãe em Salvador (BA), se converteu em uma referencia na luta contra o preconceito religioso, que sofre cotidianamente apesar de na Bahia sua religião ser preponderante. No dia de combate contra a intolerância religiosa foi instaurado pelo Presidente Lula no dia 21 de janeiro, em homenagem a Gilda.

Em salvador e arredores estão registrados oficialmente cerca de 1.500 terreiros de candomblé, mas estima-se que esse número chegue a cinco mil. “O Candomblé é um templo sagrado como qualquer outro, a única diferença é que foi rotulado de magia negra”, diz a sacerdotisa. Ela também relata outros casos de intolerância como a das crianças que nas escolas são discriminadas por professoras evangélicas, que dizem que “o candomblé é coisa do diabo”, como foi rotulado pelos que Yaciara chama de “gestores da inquisição”. Mas, “na realidade o diabo é uma figura da Igreja Católica. Nós rendemos culto a Exum, que é um mensageiro entre o natural e o sobrenatural”, esclarece.

O documento da CCIR tem um capitulo dedicado ao enfrentamento entre as igrejas neopentecostais e a imprensa, como as ações judiciais da Igreja Universal do Reino de Deus contra o jornal Folha de S. Paulo. O documento se refere ao que chama “domínio dos neopentecostais” na imprensa, no rádio e na televisão. As religiões de origem africana como o candomblé e a umbanda, esta última produto do sincretismo com o catolicismo, foram perseguidas e estigmatizadas historicamente no Brasil.

Trazidas pelos escravos africanos no começo do século XVI, foram consideradas a última fronteira cultural de negros e mestiços, segundo a CCIR. Apenas em meados do século XX foi decretado o fim dessa proibição, mas continuaram as perseguições, segundo o documento. A comissão se refere à nova ofensiva contra as religiões afro-brasileiras como a “neo-inquisição brasileira” e como “o retorno das trevas”. Destaca que isso ocorre apesar da lei contra a intolerância religiosa que estabelece penas de até cinco anos de prisão. A IPS tentou um contato com essa igreja, mas até o momento de finalizar este artigo não houve resposta. IPS/Envolverde

(Envolverde/IPS)

Nenhum comentário: